Dor Compacta.

Já não tenho mais palavras.
Vou até a varanda e é lá que fico. Olho pro nada repleto de coisas à minha frente. O nada olha para mim – suspira, passa os dedos nos cabelos, abaixa os olhos e torna a me encarar apenas para sussurrar que não deveria olhar para ele. Não como esse pedaço vazio tão perdido em uma tarde de verão. Ele permite que eu veja tudo ao seu redor, o sol poente, as nuvens escuras que nunca chegarão até onde estou. De repente, em meio de meus devaneios, o nada pára de olhar para mim, certo da minha não-atenção em sua presença. Mas o tudo à minha volta continua sendo o nada, intacto.
Imito os gestos sutis do nada. Meu suspiro parece mais um sopro forçado, deboche. Meus dedos sujos de terra e poeira em meus cabelos oleosos me trazem repulsa. Olhos abaixados só enxergam minhas mãos, absolutamente nenhuma vivência e tantas marcas ali. Antes de imaginar como minhas mãos ficariam quando chegasse ao clímax da sabedoria constante de viver, pensei que, talvez, eu já teria nascido velha, mas sem memórias. Uma velha sem memória, por algum acaso, significa algo?
E isso me levou a pensar no tempo.
Eu tenho uma definição de tempo.
Quinta feira, em torno de cinco horas da tarde de um outono indefinido, bolsa nos ombros, fones nos ouvidos. Seu cabelo está mais longo do que o normal e mais escuro. Até aparenta estar mais alta. Tem menos maquiagem ao redor dos olhos. Sua atenção está em guitarras e notas mais altas do que ela mesma pode alcançar e, por uma benção, apenas ela pode desfrutar de tal poder. Olha para os lados com uma atenção pela metade, só quando vai atravessar as ruas, e até nesse pequeno ato deixa a cargo do destino. E é lá que ela vê. Olhos antigos com tal cor que não esquecemos. Mesma altura, mesmo peso talvez. Mesmo cabelo bagunçado e mesmas bochechas rosadas. Só basta um olhar, um único sorriso, e tudo volta. A saudade e toda aquela bobagem. Um podia estar indo, o outro vindo. Ou os dois indo, os dois vindo. Estão na contramão. Um “oi” é desnecessário nesses momentos, os olhos dizem tudo. Não há ressentimento, dor, frustração. Há saudade de um tempo que a cor dos olhos e a textura dos cabelos era mais do que saber – era aproveitar.
Isso é o tempo.
É se livrar de mágoas, criar maturidade, parar de martirizar-se por algo que já passou e não será mudado. Pegar tais sentimentos antigos e colocar em caixas, trancá-las e amarra-las dentro de sua mente até que juntem poeira.
Andei ouvindo que a dor era inevitável, mas que o sofrimento era opcional. Nada mal, não? Estraçalhar o maldito sofrimento, fingir seu melhor sorriso e conviver com a dor. Ampara-la. Chorar, muitas vezes, mas só se preciso. Saber lidar com ela. Oferecer-lhe uma xícara de chá em uma tarde solitária onde apenas ela e seus pensamentos fazem-te companhia. Nada como uma mente humana e seus sentimentos moldáveis, mutáveis, deformáveis. Porque uma hora, ela acaba desaparecendo, sabe? A dor acomoda-se. A pedrinha no sapato, que antes provocara tanto incômodo, esfarela-se. Nos deixa, finalmente, em paz.
Protejo a idéia de que, se algum dia, alguém for destrancar essas tais caixas, tirar a poeira, dar um brilho e abri-las, tudo pode voltar. Sentimentos nunca são esquecidos, mas guardados em caixas de dor compactada.



N/A: Escrevi esse texto há meses, mas por algum mistério, ele se perdeu no emaranhado de textos espalhados pelo meu computador. Achei-o e me impressionei de tamanha lucidez. Ou talvez bipolariedade? Algo a se pensar. O melhor de ler textos antigos não é apenas ver como a escrita aprimora-se ou até muda completamente, e sim ver como sua mente trabalhava antigamente.

1 comentários :: Dor Compacta.

  1. Hello, Bárbara! Adorei ler seu comentário. Seja sempre bem vinda ao meu blog. :)

Postar um comentário

Comente!